Justiça de Salomão
Sei que este blogue não é para tratar de assuntos sérios e que tenho estado muito tempo ausente.
Por isso faço duas excepções à regra: escrevo e falo de um assunto sério.
Sou jornalista há alguns anos (poucos para muitos mas para mim parece uma eternidade) mas as notícias assinadas pelos jornaleiros de referência nos últimos dias sobre a menina de cinco anos alvo de uma disputa judicial em Torres Novas têm ultrapassado os limites. Eu também acompanhei o caso e também li o processo, se calhar muito antes das “estrelas” de imprensa, rádio, TV e disco terem sequer conhecimento dele. Agora, confrontado com aquilo que é dito fico estarrecido com as alarvidades e barbaridades que são escritas e ditas por quem não conhece o processo. E mesmo aqueles que o conhecem eivam os seus textos de tomadas de posição que parecem sexo oral explícito. Há textos de opiniões mais imparciais (olhem o editorial de hoje do 24 horas) do que alguns textos escritos.
Fui um dos poucos a acompanhar a disputa de poder paternal entre o pai biológico e a mãe. A história é simples e revela bem o atraso da justiça em Portugal. Uma senhora teve uma bebé e foi dizer ao pai que ela era filha dele. Ele não acreditou. A menina foi registada como filha de pai incógnito mas o Ministério Público procurou saber quem era o pai, segundo indicações da própria mãe.
O tipo, que está solteiro, ganha 500 euros por mês e vive numa casa precária, disse às autoridades que se os testes provassem que ele era pai então iria assumir a paternidade. Ele disse isto quando a criança tinha seis meses mas já vivia há três com uma família que a queria adoptar, fazendo uso de um papel assinado pela mãe que lhes conferia plenos poderes.
Mas o papel só foi assinado pela mãe e como o pai biológico foi descoberto pelas autoridades só existia uma solução para que o casal continuasse com a miúda: que ele abdicasse dos direitos. Isso não aconteceu. Baltazar quis assumir a paternidade da criança. Isso leva a uma conclusão, a menina não podia ser adoptada porque o pai – um homem de fracos recursos mas os pobres também têm direito a ter filhos - não deixava e contra isso batatas. Como os exames demoraram a dar resultado, só um ano depois é que a miúda é perfilhada, nove meses depois de estar em casa do casal “adoptivo”. Um tempo suficiente para fazer a passagem sem traumas para a menor até porque a família de adopção – um sargento do exército cheio de coisas boas no currículo e sua mulher – sabia que não tinha hipótese legal de conseguir a criança. Excepto se tentasse furar a lei e afastasse o pai, acusando-o de abandono.
Assim, enquanto o sargento e a sua desaparecida esposa, mudam de casa como eu mudo de roupa (ou até mais), é apresentado um pedido de adopção da criança e a Segurança Social de Santarém aceita o pedido, dando-lhe provimento apesar de existir um pai. Como o Baltazar estava vivo (o que é uma chatice e ainda por cima é pobre) a solução da Segurança Social foi declarar que ele abandonou a menor. O pormenorzinho é que nunca lhe perguntaram se ele a tinha deixado. Como ele não tugiu, as assistentes sociais partiram dessa conclusão peregrina. Isto foi dito em tribunal mas nada disso é referido nas peças de referência. Eu tenho um filho. Se mo roubarem e eu não for a todas as estruturas distritais de Segurança Social dizer que eu quero o meu filho corro o risco de quem o tem pode vir a avançar com um processo de adopção, alegando que eu o abandonei.
A partir daí sucedem várias coisas. O Baltazar pede o poder poternal para retirar a criança ao casal. Mas, para o Estado (que não é o mesmo da Segurança Social) não existe aquele casal, já que a criança, à face da lei, estava nas mãos da mãe. No acórdão deste processo, que dá razão a Baltazar, a própria mãe diz que tentou reaver o filho mas o casal nunca a aceitou sequer receber. Mas isto, por milagre, nunca é referido nas peças dos jornais de referência e deferência.
Com o pai sai vencedor da disputa com a mãe, a família de “adopção” estava obrigada a entregá-lo. Mas esta recusa, invocando questões como o facto de não existir um documento ordenado pelo tribunal. Ok. Dou isso de barato. Mas com base num pormenor legal, protela-se a vida de uma criança.
Pelo contrário, os pais “adoptivos” tentam meter um recurso na Relação contra essa decisão. Mas os juízes (esses sacanas) não aceitaram o recurso, considerando que eles não eram parte legítima e os recursos deveriam ser enviados pelos pais (esses sacanas que abandonaram a criancinha). Por isso feito um recurso para o constitucional, pedindo que o recurso para a Relação fosse aceite. (Confuso, não? Mas ler bloques também não pode ser apenas parágrafos de 20 palavras) Aí, o Ministério Público concordou (e não defendeu, como diz hoje o DN) e o caso deverá ser apreciado pelos juízes do tribunal constitucional. O que não quer dizer que dê razão ao recurso. E mesmo que dê, não quer dizer que a Relação lhes dê razão (eu sei, continua confuso. mas sempre são mais perceptíveis do que os textos do Vostra). São muitos ses. Com isto, já vamos em três juízes que deram razão (em várias instâncias, é certo) ao pai.
Mas voltemos à história principal. Depois de a ter o direito legal de cuidar da filha, Baltazar apresenta uma queixa-crime contra o casal de “adopção”. Como é normal, o Ministério Público acompanha e tenta localizar os paizinhos. Mas estes continuam a mudar de morada, furtando-se às convocatórias judiciais e às notificações. O próprio capitão do sargento recusa dar a morada ou o número dele ao juiz do tribunal de Torres. Isto foi dito em tribunal mas nenhum jornal de preferência pegou nisso. O julgamento por sequestro começa e a 12 de Dezembro de 2006 o tribunal ordena a sua prisão preventiva ao abrigo deste processo. Numa das audiências, o Ministério Público questiona o arguido e pede-lhe para dizer onde está a miúda mas este recusa. E o próprio advogado do Baltazar disse que abdicava do pedido de indemnizações se a criança aparecesse. Mas isso nunca é referido nas peças de referência.
O homem é condenado a seis anos e logo se levantam as vozes contra a decisão judicial do colectivo. São já seis os juízes que, burros e estúpidos, deram razão ao pai e não à família de “adopção”. Mas os pensadores é que estão certos. Porque a menina agora tem traumas e coiso e tal. Mas se a tivessem entregue ao ano de idade (quando o pai a pediu), aos dois (por ordem do tribunal) já não existiriam traumas. Com essa lógica, o gajo que raptou a miúda na Alemanha também poderia requerer a adopção porque existia uma relação prolongada e acentuada com a jovem.
Pelo meio, faço duas perguntas. E se o Baltazar fosse militar ou tivesse dinheiro? E se fosse a mãe a apresentar a queixa-crime, exigindo reaver a menor? Os pensadores teriam a mesma opinião? (eu sei, são três perguntas)
Finalmente, a minha opinião nisto tudo. Isto é como o processo de Salomão (aquele filho do David que matou o Golias) que julgou as duas mães que disputavam um recém-nascido. Quem amar mais deve abdicar para que a menina viva. Os pais adoptivos deveriam ter recuado mais cedo antes de acentuar as ligações afectivas. E, se calhar, Baltazar deveria agora recuar e ceder a menor para evitar males maiores.
Mas a tragédia maior é este país da trata que julga tudo com base em suposições. E quem deveria ter obrigação de relatar com imparcialidade não o faz porque é mais fácil dizer que as coisas são simples e reduzir tudo a uma breve de jornal.
Quem tiver procurado o fim do texto para fugir à seca está à vontade. As gajas nuas seguem mais abaixo.
2 comentários:
muito bem, cablogue. tu é que tens razão! estranho muito ver juristas a defender esta trapalhada e a acolher foras-da-lei!
Isto é muito giro.
Ao ver o comportamento dos media, cada vez tenho mais vontade em montar um restaurante.
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