terça-feira, novembro 14, 2006

Alta Arte
O futuro do passado



(...) Ignorava o nome dela, mas sabia que trabalhava no Departamento de Ficção. (...) Rapariga de ar atrevido, dos seus vinte e sete anos, com cabelo espesso, rosto sardento, e movimentos lestos, atléticos. Trazia uma estreita faixa encarnada, insígnia da Liga Juvenil Anti-Sexo, enrolada à volta da cintura, suficientemente apertada para nela realçar a forma harmoniosa das ancas. (...)

(...) Perpassaram-lhe pelo espírito alucinações nítidas, magníficas. Espancá-la até à morte com um cacete de borracha. Amarrá-la nua a um poste e cravá-la de setas como São Sebastião. Violá-la e cortar-lhe a garganta no momento do clímax. Além disso, percebia agora por que motivo a odiava. Odiava-a por ser jovem e bonita e assexuada, porque queria ir para a cama com ela e nunca o faria, porque à volta da cintura graciosa e flexível, que parecia convidar um homem a enlaçá-la, havia apenas a odiosa faixa encarnada, símbolo agressivo da castidade.

(...) E o próprio Departamento de Arquivos era afinal apenas um dos ramos do Ministério da Verdade, cuja função primordial não consistia em reconstruir o passado, mas em fornecer aos cidadãos da Oceânia jornais, filmes, livros de estudo, programas de telecrã, peças de teatro, romances - todos os tipos de informação, instrução ou divertimento, da estatuária à palavra-de-ordem, do poeta lírico ao tratado de biologia, da cartilha infantil ao Dicionário de Novilíngua. (...) Existia toda uma série de departamentos independentes dedicados à literatura, à música, ao teatro e, de um modo geral, às diversões proletárias. Aí produziam-se pasquins onde quase só se falava de desporto, crimes e astrologia; romances de cordel a cinco cêntimos cada; filmes a transbordar de sexo; e canções sentimentais inteiramente compostas por processos mecânicos numa espécie de caleidoscópio conhecido pelo nome de versificador. Havia mesmo uma secção inteira - a Pornosec, chamavam-lhe assim em novilíngua - encarregada de produzir pornografia da mais reles, que era mandada para o exterior em embalagens seladas (...)

Rangeu os dentes, Apetecia-lhe cuspir. Ao mesmo tempo que pensava naquela mulher da cave pensou também em Katharine, a sua mulher. (...) Parecia-lhe respirar de novo o odor quente e abafado daquela cozinha na cave, um odor misto de percevejos, roupa suja, com um abominável perfume barato que conseguia ser, apesar de tudo, cativante, pois nenhuma mulher do Partido usava perfume. (...) No espírito de Winston, esse aroma ligava-se indissociavelmente ao acto sexual.

Quando Winston decidiu ir com aquela mulher, foi a sua primeira escapadela em dois anos ou mais. As relações com prostitutas estavam, evidentemente, proibidas; uma daquelas regras que de vez em quando se arranjava coragem para infringir. (...) Nos bairros mais pobres, pululavam mulheres prontas a vender-se. Algumas até se deixavam comprar por uma garrafa de gin, coisa que os proles não tinham direito a beber. Tacitamente, o Partido tendia até a fomentar a prostituição, como forma de dar vazão a instintos impossíveis de suprimir completamente. A mera libertinagem não era tida por muito grave, desde que praticada furtivamente, sem alegria e apenas com mulheres da classe miserável e desprezada (...).

- 1984, de George Orwell

1 comentário:

Anónimo disse...

all animals are equal
but some animals are MORE EQUAL than others