terça-feira, junho 14, 2005

(Eu sei que isto é raro, mas preciso de escrever... só assim expurgo um mal que me mói desde que ontem - a meio da tarde - soube da morte de um mestre)

As palavras valem o valem. E tu pesaste-as até ao limite, somando cada letra como se cada opção assumida encerrasse o mistério do mundo. Jamais encontrei em ti um verso, uma expressão, um adjectivo ou um fonema que não estivesse casado com o conjunto como um favo na colmeia ou um átomo numa célula viva.
Ensinaste-me a ver a poesia com todos os sentidos do corpo e não apenas com os olhos. A tua poesia não se lia, absorvia-se como quem respira as palavras em cada golfejo de versos. Apreciar a grafia das palavras, as paragens dos versos e o ritmo das vogais eram um desafio agradável em cada releitura da tua obra.
Tu e o Caeiro são a razão do meu gosto pela poesia. Conseguiram condensar as palavras na simplicidade das coisas simples, indo à essência da palavra pureza. Se o Caeiro não conheci vivo e, por isso, posso duvidar da sua existência (ou da criação de outro homem), a tua vidaé a prova de que o homem está na terra com um objectivo estético mais vasto do que coroar estatísticas. A tua existência prova que a língua pode ser sempre reinventada e redescoberta como se as palavras fossem apenas puzzles que podemos compor das mais variadas maneiras.
Se há perfeição nas palavras tu conseguiste-as. Só tu conseguiste definir sentimentos em imagens construídas com palavras sem nunca os nomear.
Quem me dera ser de novo criança e olhar para os teus poemas com os olhos de espanto de quem descobre o mundo pela primeira vez. Com a alma limpa, poderia saborear as tuas palavras e mexer nas tuas letras como se de plasticina se tratassem. E, misturando as cores, ficaria o castanho de terra, da mistura de todas as coisas dizíveis e indizíveis com que desenhastes os meus sonhos. Tu e Sophia que também partiu.
Vi-te por duas ocasiões, sempre de longe, e nunca te quis conhecer pessoalmente. A bonomia e simplicidade destrinçada em cada sorriso teu era o suficiente para quem, como eu, sente que está a quilómetros de distância de qualquer coisa que seja parecida com a sombra das sobras daquilo que escreveste. Depois de ti, fica um deserto que todos teremos de povoar mas sempre com o sentido de que o primeiro descobridor foste tu.

Um abraço

PS1: Irrita-me terem dado dias de luto nacional a gajos que nada me dizem (mas que respeito, no entanto). E ninguém fala sequer em ti, como nem ligaram à Sophia. Porque será que os políticos se esquecem que mais importante que os partidos, os países, as fronteiras ou as nações são os sentimentos? E tu cantaste-os como ninguém.

PS2:
Finalmente: dois dos teus poemas que mais me marcaram. E que, ainda agora, me humedecem a alma.


Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos.
Era no tempo em que o teu corpo era um aquário.
Era no tempo em que os meus olhos
eram os tais peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade:
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus


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Poema à Mãe



No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe!


Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
ao fundo dos teus olhos!


Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais!


Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.


Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura!


Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos...


Mas tu esqueceste muita coisa!
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!


Olha - queres ouvir-me? -,
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;


ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;


ainda oiço a tua voz:


Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...


Mas - tu sabes! - a noite é enorme
e todo o meu corpo cresceu...Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,


Não me esquecerei de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas...


Boa noite. Eu vou com as aves!

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