O livro que ninguém irá escrever
Alguém disse que "cada velho que morre é uma biblioteca que arde". Passe o exagero da expressão, a verdade é que há por aí muitos que mereciam que lhes fosse dedicado pelo menos um livro. É o caso da Dª Maria José Pratas, 84 anos, alentejana de Santana da Serra, concelho de Ourique, que tive o privilégio de conhecer num destes fins-de-semana de Verão em que aproveito o chamamento da praia para ir a Portimão matar saudades do lugar onde vivi os meus tempos de liceu.
Sentado a uma mesa da esplanada do Café Brasil, na companhia das minhas amigas F. e E., vi interrompida a nossa conversa por um vulto subtil, num vestido azul-escuro às florinhas, que veio preencher o vazio da quarta cadeira. Singular a maneira como pediu licença para se juntar ao grupo:
"Se os meninos não comem tudo
Levam tareia dos pais
Eu apanhava dos meus
Porque queria comer mais"
Os sorrisos nas nossas caras encerravam um subliminar "quem é esta maluca?" mas acabaram por servir como um "faça o favor de se sentar" e a velhota, depois de poisar, continuou, com o seu carregado sotaque da província dos chaparros:
"Os meninos aprendem tudo
Até a falar estrangeiro
Eu não pude estudar
Meus pais não tinham dinheiro"
Já de todo esquecida a conversa que havia instantes ali tinha lugar, as atenções se voltavam todas para a recém-chegada, para a brancura dos seus cabelos curtos, para os pequenos olhinhos pretos escondidos no fundo das lentes mais grossas que a tecnologia humana podia produzir, para o enorme sinal que mais parecia uma barata estacionada na sua bochecha esquerda, mas sobretudo para a rima simples e autêntica com que nos continuava a brindar:
"O meu pai e a minha mãe
Eram dois batalhadores
Não almoçavam nem jantavam
A trabalhar para os senhores"
Fui-me apercebendo de que aqueles versinhos, da autoria da própria actriz que os recitava, contavam a história sofrida de uma mulher do interior, testemunha de uma geração marcada pela pobreza. Mas reflexões sociológicas desse tipo ficavam congeladas pelo sorriso tão amistoso como desprovido de dentes daquela figura capaz de cativar um Rodion Raskolnikov, personagem do romance "Crime e Castigo", de Fiódor Dostoiévski, que gostava de matar velhas. E o recital prosseguia:
"Eu e os meus irmãos
Éramos sete como eu queria
Hoje só restamos duas
A Alice e a Maria"
... e disse mais três ou quatro quadrinhas do género, que tenho pena de não ter decorado - as que consegui foi à força de a Dª Maria José repetir várias vezes o mesmo. Aliás, a pobre velhota sofria desse mal que a idade impõe à memória a curto prazo e faz muitos avozinhos dizerem repetidas vezes a mesma coisa, mas de cada vez como se fosse a primeira. "O menino é cá de Portimão?" foi uma pergunta que me papagaiou algumas dez vezes, sem nunca ter retido a resposta. Isto já na fase em que nos mostrou que também sabia falar em prosa:
"Eu criei uma menina que é hoje advogada. Não quer que eu lhe chame doutora. 'Pra si sou Rutinha como era dantes', diz-me ela a mim. A gente que estuda não é vaidosa", sentenciou, lançando uma luz optimista pela juventude de hoje. As coisas são certamente diferentes do que eram naquela época em que a Dª Maria José namoriscava, mas nem tudo mudou para melhor: "hoje as mulheres vestem calças e fumam. Que coisa feia! Eu não gosto de ver", confessou. E falar em fumar trouxe-lhe uma vez mais à memória a sua infância na miséria: "Apanhava pontas de cigarro do chão para o meu pai fumar. A minha mãe chateava-se. Dizia que era perigoso por causa da tuberculose. Era esquisita ela. Mas o meu pai respondia: 'ó mulher, eu ponho tudo no cachimbo, vai filtrado'".
Ao fim de algum tempo recapitulando estas histórias, dizendo e repetindo estas mesmas frases, a nossa matusalénica amiga chegou à conclusão de que era chegada a hora das despedidas:
"Agora vou andando
Não me posso demorar
Tenho o marido à espera
Capaz dele se chatear"
... e lá se foi a Dª Maria José Pratas, um livro ambulante, que não cheguei a saber se era em verso ou em prosa, mas que infelizmente nunca será escrito.
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