terça-feira, agosto 12, 2003

Re flexões de Verão

No intervalo dos fogos e das missas (e na antecâmara das férias) apetece-me postar um pouco. Bem sei que o tempo não me tem ajudado a brincar com as pérolas do dia ou alimentar o blogue do Pipi – sim camaradas, desde a avaliação das pivôtas dos telejornais nunca mais escrevi nada. Admito e fustigo-me com isso. Mas, apesar do cansaço, tenho dois lamentos a fazer.

O primeiro diz respeito àquilo que o Zizou já escreveu e que subscrevo, ampliando: NÃO HÁ CU PARA AS TELEVISÕES E QUEM CHAMA ÀQUILO DE JORNALISMO ESTÁ PROFUNDAMENTE ENGANADO, PORQUE É UMA MERDA AINDA PIOR DO QUE O PIOR JORNALISMO DE IMPRENSA QUE CONHEÇO.
Estive no terreno, junto dos meios operacionais no local (acho piada a esta linguagem militantemente militarizada dos bombeiros, mas isso fica para outro post, depois de Portugal ter ardido na totalidade como uma fagulha) e passei mais tempo a desmentir as televisões aos meus editores do que a trabalhar em concreto. Assisti a directos junto das frentes de fogo a falar sobre banalidades e fazendo eco de queixas de populares sem qualquer enquadramento prévio.

É a televisão em movimento do big show sic teletransportada para o país real. As casas em vez de ameaçadas transformavam-se em atingidas pelas chamas e se tinham sido atingidas passavam a ficar tomadas e destruídas pelos fogos. Os textos das agências e dos jornais on-line já indicavam povoações livres de perigo e a TV ainda insistia em evacuações que nunca aconteceram. Numa espiral que me recorda os milhares de mortos de timorenses nos ataques das milícias, mas isso já são contas de outro rosário que quero rezar noutra ocasião.

Depois, os pavões dos bombeiros falavam nas televisões no seu momento de glória, minutos depois de terem pedido às filhas para gravarem no vídeo as declarações. Ampliando os efeitos dos fogos para justificar mais meios e (quem sabe?) novos jipes de comando para o próximo ano. Aos autarcas ainda tolero o pânico de quem não está habituado, mas não aceito que comandantes de bombeiros digam em directo que está “tudo” destruído. Depois, após o rescaldo, vemos que, desse "tudo", ainda resta a ocupação humana do território, perdendo-se as árvores. Mais do que uma vez tive de perguntar a comandantes o que é que estava a arder depois de eles dizerem que estava “tudo” em chamas.

A segunda nota vai para um caso que vivi e me irritou solenemente dias antes da última época de incêndios. Sucedeu com um jornal de referência que publicou uma manchete fazendo eco de terroristas corsos a assaltar bancos em Viseu, Coimbra e Aveiro. A notícia não oferecia dúvidas e o jornalista assumia todas as declarações, não colocando sequer em dúvida a ligação dos assaltantes, entretanto detidos, com o Exército Nacional de Libertação Corsa. Não havia alegado ou presumível, nem sequer tempos compostos para permitir uma fuga do autor. Também fiz essa notícia e contactei (julgo) as mesmas fontes das forças de segurança que (pelo menos para mim) se contradiziam. Escrevi que a ligação do grupo com os terroristas não estava afastada das investigações e não era a possibilidade mais forte.

No dia seguinte, os chefes ligaram-me a questionar o porquê desse diário ter saído com uma coisa que eu não tinha dado. Admiti a minha total burridade e predispus-me a tentar obter aquilo que os outros já haviam dado mas, após dezenas de contactos (até para fora do país), confessei-me impotente e não consegui fazer a ligação tão simples.
Na edição do outro dia, outro jornal de referência fez uma manchete “alerta terrorista” citando e assumindo as mesmas fontes fidedignas como posições do jornalista.
Estava derrotado. Percebi aí que não servia para o jornalismo de investigação porque não conseguia obter uma coisa que DOIS jornais davam como adquiridos: a ligação dos assaltantes aos terroristas corsos, numa lógica aristotélica inabalável: se é corso é terrorista, se é assaltante corso é terrorista.

Afinal, não foi bem assim e os ditos corsos não eram terroristas, mas apenas assaltantes fortemente armados. Mas não vi os dois jornais de referência a desmentir as suas manchetes ou sequer a citar o comunicado da PJ que referenciava os detidos como criminosos de “delito comum”.

Assim vai o jornalismo. Preso das suas fontes e do sensacionalismo barato.

1 comentário:

Anónimo disse...

Para minha pena, só agora li este seu "desabafo" enquanto jornalista. Louvo a sua correcção e o seu professionalismo, sobretudo numa altura em que surgem novos assaltos e o mesmo tipo de acusações directas de que se trata de assaltantes corsos e, "portanto", de terroristas. O que não sabe de mais grave é que os senhores a que se referia, não sendo terroristas (como as autoridades francesas logo esclareceram), foram e ainda hoje são tratados como tal em Portugal. Aquelas acusações fomentadas e nunca desmentidas pelas autoridades portuguesas, apesar dos esclarecimentos das autoridades francesas, custaram desde logo aos ditos senhores mais de 2 anos de reclusão desumana, ainda preventivos, fechados 23 horas por dia numa Secção de Segurança. Mais, um deles foi eleito para ser uma das 33 actuais "cobaias" da impressionante nova prisão de Monsanto, sujeito, permanentemente, ao mesmo regime de reclusão extrema, perfeitamente enlouquecedor e violador dos direitos humanos, que ali está a ser testado. Assim se investe na criação de monstros em Portugal, onde nenhuma monstruosidade existia...