segunda-feira, agosto 25, 2003

Se Kafka soubesse...



Quem se espanta com a genialidade com que Franz Kafka engendrou os caricatos mecanismos burocráticos do seu "Processo", é porque nunca tirou um curso na Universidade de Coimbra. Eu ando a tentar...

Na verdade, já o terminei, curricularmente falando. Só me falta uma pequena coisa, um detalhe mínimo, cuja simplicidade suscitada à primeira vista não exala o mais leve odor do calvário que existe para o conseguir: uma folhinha a dizer que eu tirei o curso de Jornalismo da Faculdade de Letras e, já agora, se for humanamente possível, que me formei com 15 valores.

- É preciso comprar os impressos para requisição de diploma - responderá a invariavelmente antipática mulherzinha que estiver de serviço nesse dia ao balcão das "Certidões e Diplomas" da secretaria geral da universidade. A frase "é preciso comprar os impressos para requisição de diploma" será recitada a qualquer aluno que já tenha acabado o curso e queira cortar esse cordão umbilical que ainda o mantém unido à instituição em que se formou. Ó, utopia!

O inocente estudante estará ainda a pensar "bem, é só uma última chatice, destas a que me habituaram durante cinco anos". É nessa altura que lhe informam que o dito diploma, além de demorar mais de 10 anos a fazer, porque é escrito em latim e decorado por um velhote especialista em iluminuras que sozinho faz os diplomas de todos os que se formam na universidade, dizia eu, além de demorar pelo menos uma década a ficar pronto, irá custar qualquer coisa como 150 euros. Os mecanismos lógicos com que a Natureza dotou os animais racionais entram então em acção e mais não fazem do que adiar uma fatalidade.

- Espere, não estamos a falar da mesma coisa. Não faço questão da cartolina em latim. O que eu quero é só um papel normal, um certificado que ateste que eu concluí o curso. Com certeza que me podem fazer isso - diz o aluno, buscando algum alívio numa racionalidade que parecia se iria impor num caso tão corriqueiro.
- Sim, eu percebi - responde a Miss Antipatia, expondo então as minúcias da chantagem suprema - Mas, para ter a certidão é preciso pedir o diploma.

A dureza do golpe é sentida de forma proporcional à habituação que o jovem tenha em aplicar conceitos de justiça, valor, razão, e outros que tais, à vida quotidiana. Quanto mais depressa se livrar de pensamentos como "Eu, que passei todas as provas e me esforcei por ter sempre as propinas em dia, não terei o direito à prova oficial do meu empenho? Não terá a universidade a obrigação moral (senão legal) de me DAR esse documento?", quanto mais rapidamente deixar de ter esse tipo de reflexões, dizia, mais depressa o seu espírito encontrará alguma pacificação. A lógica não tem lugar no submundo das secretarias académicas. A autoridade e a prepotência imperam. Lutar é escusado. Jovem, depois de tudo o que pagaste até agora, mais 150 euros e és livre. OK, um último esforço...

Passados meses de ter pedido (e pago) o famigerado e caro "diploma", para que me dessem a bendita e barata "certidão", telefonei para a secretaria geral para saber se esta já estava pronta. "Só atendemos questões relacionadas com certidões e diplomas entre as nove e as dez da manhã", respondeu uma clone da mulherzinha que me tinha atendido anteriormente. Eram 10h30 e só me apetecia perguntar "por quê?", mas resisti à tentação e poupei-me a ouvir mais uma demonstração de sadismo burocrático, com a qual certamente seria brindado.

Na manhã seguinte, entre as 9h e as 10h, empunhava eu novamente o auscultador encostado ao ouvido e a minha hesitante mão direita tremelicava o mesmo número marcado na véspera... 239... 85... 99... 00... após o que se produziu o seguinte diálogo:

- Só um instante que eu vou ver se já está pronto. [pausa demorada]. Olhe, a sua certidão está aqui, mas tenho uma indicação de que tem ainda algumas dívidas de propinas que terá de saldar. Só depois é que poderá levantar a certidão.
- Oiça. Só pode haver um engano. Eu sempre tive as propinas em dia.
- Mas, eu tenho a indicação de que deve uma soma de um euro e trinta relativa à época 98/99 e também parece que tem aqui qualquer coisa de 97/98...
- !!!???
- ... mas, se me está a dizer que pagou, traga então os recibos ou as declarações do IRS que os seus pais apresentaram nesses anos...
- Minha senhora, acontece que os meus pais não estão a viver em Portugal e eu nem sequer sei se esses papéis ainda existem. Diga-me uma coisa, como é que é possível eu estar a dever o que quer que seja relativo a esses anos? Se bem me lembro, só depois de pagas as propinas é que era possível fazer a matrícula. Se eu estive matriculado, logo... - tentava eu inútil e teimosamente incluir a lógica do 2+2 num mundo em que o 5 era o resultado dessa operação.
- Pois, mas diz aqui que está a dever. Se me está a dizer que pagou, é só trazer os papéis que o comprovam...
- !?!?!?... - já ligeiramente atacado pela cólera - Minha senhora, supondo que eu não tenha comigo os papéis de que falou, quanto mais é que eu tenho de voltar a pagar para me darem o raio da certidão?
- Ah, mas se já pagou, não vai voltar a pagar, não é!?...
- ... Diga-me então uma coisa. Eu estou em Lisboa. Quando for aí a Coimbra tentar levantar a certidão, tem que ser entre as 9h e as 10h, ou pode ser a qualquer hora? - disse, derrotado pelas normas de desfuncionamento da secular instituição.
- Convinha ser dentro do horário da secretaria.
- Que é?...
- Então, das 10h ao meio-dia e, depois do almoço, das 14h às 16h30.
- Claro!...

Agora, o que me mói é que já sei o que me espera. Um dia, tiro uma folga para ir a Coimbra. Chego lá e não me dão a certidão porque... as relativas a cursos da Faculdade de Letras só podem ser entregues em dias pares e nós estamos num dia ímpar... ou porque é necessário preencher 30 páginas de uns impressos de levantamento de certidões, mas que só podem ser marcados a esferográfica roxa e eu, nesse dia, só tenho uma BIC preta.

No momento em que escrevo este desabafo só com a mão direita, o que a esquerda mantém encostado ao ouvido não é o auscultador do telefone, mas o cano de uma Colt calibre 22, que parece ser a única coisa capaz de me livrar da teia burocrática com que a minha querida universidade eferriá-chiribi-tatatatá me mantém aprisionado. O suor escorre-me pela testa e imagino como isto seria mais fácil se, pela minha porta, entrasse uma dessas carrascas da secretaria, que fizesse o favor de apertar o gatilho. Meu espírito, então, correria livre, finalmente, em direcção a um mundo sem impressos, sem selos, sem carimbos. Livre, enfim! "Como um cão..."

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