quinta-feira, setembro 30, 2004

Agora que me apetece blogar, junto segue um texto que guardei no computador pelo tamanho grau de sapiência de alguns críticos de artes.

«TERMINAL DE AEROPORTO Trânsitos sobremodernos
Há um visitante da Karkhozia, Viktor Navorski, prolongadamente retido num terminal do aeroporto JFK em Nova Iorque; devido a acontecimentos no seu país, e aos mecanismos de controlo securitário, não é autorizado a entrar em solo americano, nem há base legal, nem possibilidades logísticas para o repatriar. Pois, a Karkhozia não existe, nesse sentido é um não-lugar, espaço ficcional, e a situação de "Terminal" afigura-se inverosímil.
Pensemos agora noutra situação: "Quando um voo internacional sobrevoa a Arábia Saudita, a hospedeira anuncia que durante a duração do sobrevoo é proibido o consumo de álcool no avião. A intrusão do território no espaço é assim significada. Terra = sociedade = cultura = religião: a equação do lugar antropológico reinscreve-se fugidiamente no espaço. Reencontrar o não-lugar do espaço, um pouco mais tarde, escapar à restrição totalitária do lugar, será reencontrar algo que se aparenta à liberdade" - "Não-lugares - Introdução a Uma Antropologia da Sobremodernidade" de Marc Augé (ed. portuguesa na Bertrand). Se Augé, nesse livro como em "A Guerra dos Sonhos - Exercícios de Etnoficção", se tem referido também ao estatuto antropológico de algumas séries televisivas americanas, eis um filme americano em que nos reencontramos também com espaços e sobreposições como as que o antropólogo analisou enquanto "não-lugares".
A matriz capriana da obra de Spielberg é por demais reconhecível, a grande referência sendo "It's a Wonderful Life/Do Céu Caiu Uma Estrela". A fascinação por personagens alienígenas, como o famoso E.T., tem referente primordial no anjo desse filme de Capra. Essa é a matriz de novo particularmente patente neste filme, já que Navorski é de algum modo um "e.t." retido no terminal - mas não é tanto isso que importa. "Terminal" é um filme de imensas virtualidades na improbabilidade de um encontro de Capra e Kafka, ou de imaginários caprianos e kafkianos. Muito poucos serão os casos em que um pesadelo burocrático (porque há também esse nível burocrático do controlo securitário), uma dessas situações que reconhecemos como "kafkianas", foi tão minuciosamente presente num filme desta envergadura produtiva e espectacular.
Uma tal tentativa de articulação de universos notoriamente antitéticos - o optimismo capriano e o pesadelo kafkiano - supôs um terceiro incluído, que é, declaradamente, Jacques Tati. Estamos afortunados por ainda ter tido há pouco a ocasião de (re)ver "Playtime - Vida Moderna". Aproveitemos, então, oportunidades de revisão.
Consideremos "Tempos Modernos" de Chaplin - podia ter um subtítulo marxiano, "consequências sociais da maquinaria automizada", caracteristicamente da era industrial. Com "Playtime" ocorriam outros tipos de espaços, sinaléticas, sociabilidades - e confusões de percursos e identidades.
Retomo Augé: "Por 'não-lugar' designamos duas realidades complementares mas distintas: espaços constituídos para certos fins (transporte, trânsito, comércio, divertimento), e a relação dos indivíduos com esses espaços (...) Mas os não-lugares reais da sobremodernidade, aqueles que tomamos quando vamos pela auto-estrada, fazemos as compras no supermercado ou esperamos no aeroporto pelo próximo voo têm a particularidade de se definirem também pelas palavras ou os textos que nos propõem, o seu modo de emprego, que segundo os casos se exprime de modo prescritivo ('circule pela faixa da direita'), restritivo ('é proibido fumar'), ou informativo ('está a entrar em...'), recorrendo tanto a ideogramas mais ou menos explícitos como à língua natural." "Playtime - Vida Moderna" foi o primeiro filme com um olhar sistematizado para as novas paisagens da sobremodernidade, começando no aeroporto.
Essa a razão primeira da filiação, até porque, tomando à letra, ou ao olho, o título, a entidade principal do filme é o "terminal de aeroporto", na magnificência da construção do espaço (e falo propriamente do espaço fílmico interno aos planos, não tanto do seu preâmbulo cenográfico) e na pontuação dos diversos elementos de visão e observação - a alucinação de Navorski quando vê numa televisão o que são supostas serem "imagens reais" das convulsões no seu país ou o seu jogo com o controlador de segurança que ele sabe estar a observá-lo em videovigilância são dos momentos mais notáveis.
Fábula que seja, "Terminal" não deixa de estar ancorado no real. Karkhozia já não nos soará hoje tanto como as Burdúria e Sildávia de Tintim no "Ceptro de Otokar" ou os reinos de opereta, mas como aquela inquietante estranheza afinal próxima da Ossétia ou da Ingúchia. Como proceder às descodificações e como estabelecer as normas de proximidade reconhecível?
A improbabilidade da fábula "capriana" ("Terminal" é um apelo à tolerância do democrata Spielberg), num tal quadro de pesadelo securitário "kafkiano" determina o limite do filme: a estranheza perante Navorski não existe, pois que ele é reconhecivelmente o "all american" Tom Hanks. Mas o paradoxo maior e primeiro não impede - pelo contrário, também dele decorrem - outros paradoxos secundários, que são dos mais interessantes do filme: a alucinação de Navorski perante a televisão é uma radical incompreensão de uma apresentação americana de imagens referentes ao seu país, enquanto para os burocratas securitários é incompreensível que para o outro o significante América, aquilo que o traz, seja a marca, o autógrafo, de um músico de jazz, Benny Golson. Questões de descodificação, de linguagens sobrepostas em espaços da sobremodernidade»

Perceberam?

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