Compulsivamente
No fim de semana estive a lavar o carro. É um acto religioso para muitos. Para mim, é apenas uma tarefa mecânica e estúpida. Apetrecho-me de de sprays e sparayzinhos como nomes alemães, retiro o lixo acumulado de quatro semanas de dentro do carro e coloco-me na fila da auto-lavagem. Ali, naqueles longos minutos de espera, leio o Record e oiço o Carlos Magno enquanto, um a um, os companheiros de jornada lavam, polem e limpam os seus veículos. Depois, quando chega a minha vez, gasto dois euros em água limpadora, abrilhantadora e enxaguadora e tento limitar os danos causados por moscas e lama agarrada à fibra de vidro. Numa ou noutra ocasião, percebo que existe um risco e grito por dentro como uma criança enquanto tento disfarçar a cicatriz do golpe.
Após este acto cerimonial, retiro os tapetes e lavo-os numa maquineta velha enquanto aguardo pelo sacrossanto aspirador das impurezas. Então, armado com spray contra nódoas e uma escova dos dentes velha luto contra manchas, restos de iogurte e de chocolate espalhados pelos estofos. Nesses lentos e pesados minutos, desespero por um grão de lama agarrado ao rebordo da borracha e vocifero contra o resto de sumo que manchou o tapete.
No final, satisfeito como Hércules perante um dos trabalhos que teve de sofrer, vou beber um café e uma água com um sorriso nos lábios de triunfo. Sigo para casa, recolho a mulher e o miúdo para ir comer fora com o ar e o peito satisfeito do trabalho cumprido. Com o carro estacionado à beira da entrada da casa, ajudo o miúdo a subir. Cai-lhe a bolacha com manteiga que levava sobre o banco enquanto tenta empoleirar-se na cadeira. Antes que eu me aperceba, pisa-a no momento de saltar para o banco e fico siderado de terror.
Em choque, encosto-me à porta do carro enquanto a mulher arruma as coisas na bagageira. Antes de conseguir balbuciar palavra, passa um carro por uma poça de água e asperge com lama os vidros que eu lavei com tanto custo.
Não me ocorre mais nada que não chorar.
Compulsivamente.
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